terça-feira, 31 de maio de 2016

Contos Do Marinheiro Bravio, por JEB (José Eduardo Bertoncello)

Contos Do Marinheiro Bravio

Autor: JEB (José Eduardo Bertoncello)



Eu o conheci quando era criança. O marinheiro.
No começo do século XIX, eu e meus pais fazemos longas viagens juntos. Singramos o mar em navios, encaramos tempestades diversas vezes... Mas uma foi diferente. Uma vez, pareceu que o mundo ia acabar. Uma borrasca que parecia maior que a vida nos pegou. Mas ele estava lá.
Nós, passageiros, os frágeis, nos escondemos. Alguns ficaram. Ele ficou.
Diante de um furacão que era um deus furioso em meio a um apocalipse que eram seus cães de caça, o marinheiro manteve o navio firme, nos afastou do pior e nos fez aguentar o perigo que nos atingiu. O mar não conseguiu fazê-lo soltar o timão, mesmo inclinando o navio e jogando quase todo o oceano contra seu corpo. Ele venceu aquela queda de braço com a Natureza.
Ele era algo além dos demais homens. Disso, ninguém tinha dúvida. Especial.
Tinha uns quarenta ou cinquenta anos, e era muito feio. Poderia ser monstruoso com sua rudeza e desgaste... Mas algo o tornava cativante. Acho que era a alma. Uma alma nobre. Heróica. Dela vinha o seu brilho.
Careca. Um dos olhos sempre fechado, talvez por um ferimento, talvez pelo excesso de luz da imensidão marítima. Cachimbo sempre na boca, mais fiel que um cão ou um amigo. Pele judiada pela exposição aos dias de mar, couro duro e rachado de quem era chicoteado pelo sol dia a ida.
Não era tão alto, mas era muito, muito musculoso e tinha ossos grandes. Seu corpo gritava ser potente e resistente. Seu queixo era uma bigorna. Os braços dele eram enormes... Talvez minha visão juvenil, muito impressionável, os tenha exagerado ao fixar a imagem na memória... Mas me pareciam enormes. Anormais. Eram maiores que minha cabeça. Verdadeiras marretas. Dignos de um Hércules, capazes de vencer monstros. Tatuados com âncoras, adornados com o símbolo de sua fonte de força e de seu desafio constante.
Ele parecia um potente transatlântico. Era um verdadeiro homem do mar, um homem que fora talhado pelo mar para o mar.
Era um cara legal. Os outros o adoravam. E ele falou comigo, brincou comigo.
Eu ouvi várias histórias, de todos aqueles marinheiros cheirando a suor, bebida, peixe e sal. Claro que hoje não acredito em nenhuma delas... Mas a criança que fui as adorou. Ela viajou em todas elas, para mais além de qualquer outro lugar que meus pais haviam me levado.
Ele enfrentou um lula gigante.
Ele encontrou um navio-fantasma.
Ele sobreviveu ao Maelstrom. Ele conheceu o Capitão Nemo. Ele viu o Leviatã.
Ele viajou até as áreas mais longínquas, onde os monstros dos mapas antigos haviam se refugiado... Perto do fim do mundo, onde ficavam as fendas secretas pelas quais os oceanos caiam.
E as sereias tentaram encantá-lo, mas sua alma se manteve fiel a sua amada.
É, ele tinha um amor. Os heróis sempre tem.
Nós, passageiros, os frágeis, já haviamos desembarcado e estávamos quase indo, quando ele e os outros marinheiros começaram a sair. Foi quando os vi.
Quando desceu para terra, seu andar era estranho. Não gostava da calmaria.
Ela estava lá, esperando-o. Quando a vi, me pareceu tão sem graça... Muito magra, com uma voz horrível. Feia, pensei, criança que era. Feia na medida para combinar com ele.
Ele, entretanto, a tratou como uma dama, como uma princesa. Sua princesa. Nunca esqueci disso.
Sua feiura e rudeza, os desgastes de uma poderosa ferramenta com muitos anos de uso agressivo, conviviam com a alma mais nobre e cavalheiresca que poderia haver.
Um exemplo de optar por ser forte e nobre. Nunca esqueci disto, mesmo crescendo. Nunca esqueci dele.

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